Verões dos Kaingang

Zero
11 min readDec 11, 2019

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Após três décadas migrando para Florianópolis durante a temporada, indígenas finalmente ganham a promessa de moradia fixa na capital

Sob Orientação da Profa. Melina Ayres
Texto por Ne-Gatxa Patté & Rodrigo Barbosa

Reunidos na ocupação do Tisac. Ao fundo, as barracas de lona que abrigam a maioria dos indígenas. Foto: Rodrigo Barbosa

L á em Floripa nunca foi índio vender artesanato, mas eu vou te levar pra lá, pra ir vender”. Com essas palavras, Dona Teresa, hoje com 97 anos, foi convencida por um de seus filhos a se aventurar na capital catarinense. Há mais de 30 anos, deixou a Terra Indígena Votouro-Kandóia — na região de Erechim (Rio Grande do Sul) — e embarcou para a cidade de Florianópolis (Santa Catarina), a 500 quilômetros de casa. A safra daquele ano não tinha sido boa e vender balaios de taquara na turística temporada de verão na Ilha de Santa Catarina foi a alternativa encontrada pela agricultora para que não faltasse comida na mesa de casa. Iniciava-se ali uma peregrinação anual que hoje envolve mais de 70 famílias de diferentes aldeias do sul do país. Aos 97 anos, Dona Teresa segue vindo para Florianópolis todos os verões.

No começo, Dona Teresa se instalou na casa de uma senhora católica — Dona Maria – que alugava quartos a baixo custo no Morro da Caixa, na parte continental de Florianópolis. O aluguel, entretanto, só começou a ser pago depois que as vendas começaram a dar retorno. “Ela disse: ‘irmã, pode ficar aqui até que a senhora faça seus negócios’. E eu fiquei”, relembra Dona Teresa. Aquela seria a moradia de verão pelos próximos anos, da pioneira artesã, uma das mais de 25 mil pessoas da etnia Kaingang espalhadas pelo Brasil.

Depois de algumas viagens, ela começou a ser acompanhada por outros indígenas. “Os outros sempre ficavam me olhando, né? ‘Como ela vai lá e já volta?’ Até que os outros já vieram pra cá também, vender balaio. É a nossa vivência, os balaios. Aí a gente se vira assim, fazendo isso”.

O espaço de Dona Maria no Morro da Caixa, porém, era insuficiente para todos. Com pouco dinheiro e sem ter para onde ir, a solução encontrada por parte dos viajantes Kaingang foi se instalar debaixo do Elevado Dias Velho, no centro da cidade. Lá permaneceram por vários anos. “Morar debaixo da ponte? Deus o livre! Tinha que pagar dez real [sic] uma vez por dia só pra ir tomar banho na rodoviária”, relembra um dos indígenas.

Há uma década, o grupo começou a reivindicar um espaço mais adequado, mas apenas em 2015 colheu resultados. Nesta altura, indígenas Kaingang de outras aldeias do interior de Santa Catarina e do Paraná haviam se juntado à ocupação. No mesmo ano, uma criança indígena de apenas dois anos foi assassinada na cidade de Imbituba (litoral catarinense). Vitor Penido era Kaingang e foi morto no colo da mãe, que havia ido à cidade vender artesanato. Com medo de serem vítimas de algum crime similar, os ocupantes do Dias Velho intensificaram a mobilização e conseguiram junto ao Ministério Público Federal (MPF), através de uma Ação Civil Pública, a garantia de que um local seria construído para abrigá-los — a Casa de Passagem Indígena.

A Ação, expedida pelo Procurador da República Eduardo Barragan, determinou que União, Funai (Fundação Nacional do Índio) e Prefeitura de Florianópolis seriam responsáveis por acomodar os indígenas em outro local até a construção da Casa de Passagem. A manutenção do local escolhido também seria de responsabilidade destes órgãos.

Cogitou-se que a ocupação fosse feita em um prédio no centro da cidade, mas a prefeitura alegou que não seria possível pelo edifício em questão ser tombado. A solução encontrada foi indicada pela Superintendência de Patrimônio da União (SPU). “Houve uma informação que veio da SPU de que existia esse imóvel que tinha sido cedido para a prefeitura para a construção de um terminal urbano, o Tisac, e que nunca tinha sido utilizado para essa finalidade. Na época, estava com a cessão vencida e a própria prefeitura disse que não tinha mais interesse de utilizar o espaço. Por isso que o Tisac foi escolhido”, explica a Procuradora do MPF Analúcia Hartmann, que hoje é a responsável por mediar o diálogo entre indígenas e Poder Público.

A partir de 2016, o antigo Terminal Rodoviário do bairro Sacos dos Limões (Tisac) seria o lar dos Kaingang que migram para Florianópolis durante o verão. Nesse espaço, ganhariam a companhia de Dona Teresa e sua família.

Ocupação do Tisac

Antes de se tornar o alojamento dos Kaingang, o Tisac estava abandonado desde 2005. Na época da ocupação, o terminal ainda recebia os serviços de vigilância que uma empresa contratada pela Prefeitura realizava em todos os terminais da cidade. As instalações elétricas e sanitárias do local estavam em bom estado.

Mas a situação da ocupação mudaria drasticamente em 2017. “Chegaram aí e ‘tacaram’ fogo em tudo. Em tudo, tudo, tudo. Tinha uma cozinha comunitária que era pra todo mundo. Lá atrás também tinha um ‘negócio’ só pra colocar coisa de lavar louça, papel higiênico, tudo… Eles pegaram e ‘tacaram’ fogo em tudo, dentro dessas casinhas”, relembra Luciana, neta de Dona Teresa. Ao retornarem para suas aldeias depois da Páscoa daquele ano, os Kaingang deixaram o terminal, que foi completamente destruído. Nunca se descobriu os autores do incêndio.

Ainda hoje, os ocupantes seguem buscando ajuda do Poder Público para retomar as condições do início da ocupação. Entretanto, não tem sido fácil conseguir melhorias para o local. Até o começo de 2019, apenas dois banheiros eram divididos pelo grupo que ultrapassava as 200 pessoas. Com a ajuda de movimentos sociais e de uma igreja vizinha, o número de banheiros já subiu para seis (três masculinos e três femininos), mas segue sendo insuficiente. A prefeitura, que foi responsabilizada pelo MPF para manter o local, também instalou um par de banheiros químicos, mas, de acordo com os ocupantes, a manutenção não é feita com a regularidade necessária. “Já faz uns 12 dias que estão sem fazer a limpeza lá e o odor está terrível. A coisa mais básica é fazer essa limpeza, não vai custar muito e é um direito nosso. É um direito de cada cidadão. Assim como o povo branco têm os seus direitos, eu acho que eles têm que olhar um pouco mais para a questão da limpeza ali”, enfatiza o ocupante Neri Francisco.

O local também é mal iluminado à noite e, por não haver cobertura lateral no prédio, está sujeito à ação dos ventos e chuvas tão comuns no verão da Ilha. A situação se agrava ainda mais pelo fato de os Kaingang se instalarem em barracas: apenas três foram cedidas pela Defesa Civil, o que fez com que dezenas de barracas de lona improvisadas se espalhassem pelo terminal. Cada uma delas abriga de três a quatro famílias.

“Vieram aí e ‘tacaram’ fogo em tudo, tudo, tudo”

Porém, nem tudo são espinhos no dia a dia da ocupação. “As crianças se sentem mais livres agora. À vontade, né?”, ressalta o ocupante Sadraque Lopes. “Eles brincam… De dia, a gente deixa o portão [de entrada] encostado
e eles ficam brincando por aqui mesmo. Mais soltos, né? E antes, não. Antes tinha que ficar ali de olho sempre”. De acordo com os indígenas, essa liberdade para a criação das crianças se assemelha mais à rotina que os jovens Kaingang levam em suas aldeias.

Sadraque comenta que, sempre que possível, trazem comidas típicas de suas aldeias para a capital. Destaca, em particular, a farofa, o fuá e a radicha (os dois últimos, hortaliças cultivadas pelos indígenas em suas terras). De acordo com ele, até mesmo os fóg (equivalente a “homem branco” em Kaingang) vêm provar as especiarias. A língua Kaingang é a maneira primária de comunicação entre a maioria dos moradores. “Tu sabendo fazer artesanato e falar no idioma Kaingang é uma questão para nunca morrer a cultura. A cultura sempre tem que estar acompanhada”, destaca.

Kaingang reivindicam a construção da Casa de Passagem, em protesto realizado em 22 de fevereiro. No lado direito da foto, parte do Tisac, hoje ocupado por eles. À esquerda, terreno onde a Casa será construída. Foto: Rodrigo Barbosa

Por ser um local cercado, o Tisac também facilita na produção do artesanato. Apesar de não contar com um depósito ideal para guardar as matérias-primas utilizadas (o que havia foi danificado no incêndio), o local é mais seguro que o Elevado Dias Velho. “Ficamos fabricando aqui mesmo. Produzindo aqui mesmo”, diz Luciana, enquanto se dedica a mais um de seus famosos balaios de cipó.

Para Luciana, vender os balaios no verão é a garantia de que não precisará voltar a trabalhar em fábricas, como já fizera no passado. Ex-funcionária de uma empresa frigorífica, ela comenta que sentia saudades da rotina da aldeia e que não conseguiu se adaptar bem ao modo de produção fabril. “Eu não gostei, porque eu não queria ser mandada lá na firma. E aqui eu sou uma firma. No Centro eu sou bem conhecida como a índia do cipó”. Em um dia ensolarado nas praias da cidade, consegue arrecadar até R$ 300,00 com a venda de artesanato.

Luciana é a única indígena da ocupação a fazer este tipo de artesanato. Os demais balaios são feitos de taquara. O fato é motivo de orgulho para a avó, Dona Teresa: “Essa daí desde que era pequena ia comigo vender. E agora ela faz o mesmo que eu. Ela também sabe fazer balaio. Faz até de cipó. Eu digo pra ela: ‘eu gostaria de aprender a fazer de cipó também’”.

A produção e a venda do artesanato de seu povo na capital orgulha avó e neta, mas a saudade de casa faz parte da rotina de todos os ocupantes. “A gente sente falta da casa. Hoje mesmo ela [a avó] já estava pensando em ir [para a aldeia]. Pra atender os nossos bichinhos lá também”, diz Luciana, que é interrompida pela avó: “tem os netos também, que estavam aqui com nós [sic] e já voltaram”. A bisneta mais nova de Dona Teresa, porém, segue em Florianópolis, onde nasceu há dois meses. “Nasceu aqui em Floripa, é manezinha de Floripa”.

Passada a Páscoa, a temporada de verão dos Kaingang chega ao fim e as duas artesãs estão próximas do retorno à casa. O mesmo não pode ser dito de Neri, pai de Luciana e filho mais novo de Dona Teresa. Ele faz parte da Comissão Indígena, grupo de treze pessoas escolhidas pela comunidade indígena para debater as questões da ocupação frente ao Poder Público. De acordo com ele, de cinco a dez famílias ficarão no terminal durante todo o ano de 2019. A decisão evitaria que novos casos de vandalismo se repetissem no local.

Ainda segundo Neri, o real motivo da permanência é a promessa da construção da Casa de Passagem. A expectativa é que, permanecendo na capital, terão mais voz para dialogar com prefeitura e MPF para que, enfim, a Casa seja construída.

Casa de Passagem

Com as dificuldades para encontrar um local que pudesse ser adaptado a fim de abrigar os indígenas, ficou acordado que uma nova construção seria feita. Em 30 de outubro de 2018, o vice-prefeito de Florianópolis, João Batista Nunes, assinou um termo de compromisso com o MPF, no qual a Prefeitura se responsabilizava pela construção da Casa de Passagem em um terreno ao lado do Tisac. O terreno é ocioso e seria cedido sem custos à prefeitura pelo governo federal. No acordo, ficou definido que o prédio deveria ser construído até o dia 1º de julho de 2019.

Esgotado o prazo final, não há sequer sinais de obras no terreno. “Este ano [2019] as coisas começaram a dificultar porque tem uma movimentação de moradores da região que têm se posicionado contrários [à construção]. Eu imagino que isso tem trazido uma certa pressão contra o prefeito”, afirma
a Procuradora Analúcia Hartmann.

Parte dos moradores do bairro entendem que a permanência dos indígenas traria problemas de segurança à região. Hartmann discorda: “Tem um componente de falta de informação, eles veem aquilo mal arranjado, muitas barracas, um monte de roupa pendurada… mas tem um caráter bem claro de preconceito. Têm facções e tráfico de drogas [na região] e eles estão preocupados com os indígenas?”.

Os desentendimentos em torno da construção da Casa de Passagem fizeram com que o projeto do novo espaço se atrasasse. No dia 10 de maio, uma reunião na sede do Ministério Público em Florianópolis apresentou a versão final do projeto. Além da Procuradora, representantes da Funai e da prefeitura de Florianópolis estiveram presentes, assim como membros da Comissão Indígena. O projeto arquitetônico foi aprovado por todas as partes envolvidas.

A aprovação desse projeto, entretanto, não significa que a construção esteja em vias de ser executada. Isso porque ainda existem pendências no contrato dos projetos hidráulico e elétrico, responsabilidade da prefeitura. “Neste momento, nós dependemos exclusivamente da prefeitura para a gente conseguir colocar a licitação e o contrato andando”, analisa Hartmann. A procuradora também ressaltou que a expectativa que existia por parte dos Kaingang de que a Casa de Passagem estivesse pronta para o próximo verão não irá se concretizar. Se tivesse começado antes de agosto ou setembro, com tudo dando certo, ela ressalta que mesmo assim ainda ficaria difícil.

O projeto aprovado no MPF consiste em dois blocos de dormitórios para abrigar as mais de 70 famílias que migram anualmente à capital. Um terceiro bloco com banheiros, cozinha e depósitos será construído nos fundos do terreno. Ainda há um refeitório com espaço para fogueira e um pátio central que funcionaria como espaço de lazer e convivência entre as famílias. Embora não esteja previsto no projeto por limites orçamentários, há, ainda, um espaço para a futura construção de uma oca Kaingang que serviria como espaço de exibição e venda de artesanato. As pinturas e adereços do edifício remeterão à cultura Kaingang.

A gestão da Casa de Passagem será compartilhada entre indígenas, prefeitura e Funai. A limpeza e organização interna ficarão a cargo dos indígenas. A segurança será feita pela prefeitura, através de câmeras.

Uma nova reunião será marcada no futuro para definir algumas regras da ocupação, como tempo de permanência máxima de cada família, restrições ao consumo de álcool e a ruídos noturnos no espaço. Além disso, será definida uma idade mínima para as crianças que ficarão na Casa de Passagem. No período letivo, elas são obrigadas a deixar a ocupação e retornar às suas casas
para comparecer às aulas.

Na reunião realizada no Ministério Público, os Kaingang reafirmaram a intenção de ocupar o Tisac até que a casa, ainda sem cronograma oficial, seja construída. Os representantes da prefeitura não apresentaram quaisquer novidades no andamento do contrato para os projetos hidráulico e elétrico e questionaram se o projeto arquitetônico apresentado se enquadraria no orçamento disponível (algo entre R$ 900 mil e R$ 1 milhão). Afirmaram, ainda, que apenas o prefeito Gean Loureiro e o Secretário de Transportes e Mobilidade Urbana, Michel Mittmann, poderiam responder questões referentes ao assunto. Os gabinetes do prefeito e da pasta presidida por Mittmann não responderam à reportagem até a sua publicação.

Mesmo com o atraso no cronograma, os Kaingang estão animados por terem visto, pela primeira vez, como ficará a nova casa. “A gente não está lutando só para conseguir a Casa de Passagem. O nosso projeto tem a horta, tem um espaçozinho para fazer apresentação, casa de oficina, de artesanato… Então a Casa seria um jeito de ajudar a manter a nossa cultura”, afirma Jocimar da Silva.

Se a burocracia e a falta de verbas têm atrasado o sonho dos Kaingang, a esperança de Dona Teresa e dos mais de 200 ocupantes do Tisac segue intacta. Viaduto, incêndio ou preconceito não foram obstáculos suficientes para que eles deixassem de buscar no artesanato vendido em Florianópolis a complementação de suas rendas. Tampouco foram grandes o suficiente para que os Kaingang abrissem mão do sonho de ter um pedaço da cultura de seu povo eternizado na capital de Santa Catarina. E esse sonho (esse, sim, enorme) nunca esteve tão próximo.

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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