A Torre Eiffel vista de dentro do metrô parisiense de superfície. Créditos: arquivo pessoal

#ZeroEmPandemia: França

Em um dos países mais duramente afetados pela Covid-19 na Europa, o Zero entrevistou Vitória Favini, estudante brasileira que relata como foi viver entre lockdowns e restrições constantes na Cidade das Luzes

Zero
10 min readJul 12, 2021

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Por Mahara Aguiar

Caminhar pelas ruas de Paris é um convite a flanar sem rumo, pensando nos mistérios da vida e observando as engrenagens da sociedade francesa. Aos finais de tarde, margeando o rio Sena, não são poucas as pessoas que se reúnem com amigos e desconhecidos para as soirées, as reuniões informais nas ruas francesas. Há o fluxo contínuo de pessoas entrando nos subterrâneos da cidade, embarcando no metrô lotado que os levará para casa. As ruas apinhadas de turistas saboreando o pôr do sol atrás da Torre Eiffel, com as câmeras profissionais e celulares em mãos. Os carros se acavalam no trânsito com motoristas alheios às obras monumentais, históricas, que os cercam: o Louvre, a Praça da Concórdia, o Pantheon, o Arco do Triunfo e o Moulin Rouge.

Não em 2020. Durante boa parte do ano passado, os poucos que andavam nas ruas eram os próprios parisienses, que esperavam chegar logo em casa. Segundo determinação do governo francês, havia uma distância máxima que a pessoa poderia se deslocar de sua residência — às vezes, três ou cinco quilômetros, às vezes apenas um. Nos poucos meses em que as restrições de isolamento afrouxaram, ainda em junho do ano passado, mês do início do verão europeu, a vida pareceu quase voltar ao normal. Pessoas passaram a caminhar nos parques, colegas se reuniam em piqueniques. Porém, máscaras nos rostos e ausência de turistas indicavam o ano atípico.

A paranaense Vitória Stuani Favini, 23, viu, em primeira mão, as mudanças que a pandemia causava na cidade. Residente da capital francesa desde agosto de 2019, a estudante de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) se mudou ao ser aceita no Projeto de Cooperação Brasil-França, o Brasil France Ingénieur Technologie (Brafitec), e receber o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para viajar à França e complementar sua graduação. Desde então, estuda na Polytech, escola de engenharia da prestigiada Universidade Sorbonne.

Vitória Favini, 23, nos gramados internos da Cité Universitaire, onde mora desde 2019. Crédito: acervo pessoal

Segundo ela, a ação do governo do presidente Emmanuel Macron foi dura no início da pandemia. “Macron decretou uma guerra sanitária contra um inimigo invisível. A gente entrou num lockdown que parecia um mundo pós-apocalíptico”, relata. Das 10 pessoas com quem dividia a residência, na Cidade Universitária de Paris, distrito estudantil formado para abrigar estudantes e pesquisadores internacionais na capital, apenas três permaneceram. “As pessoas saíram de Paris, foram pra casa dos pais, dos parentes, no interior”, explica. “Muita gente perdeu trabalho, e muitos estudantes precisavam de trabalho para poder estudar”.

Desde fevereiro de 2021, a brasileira estagia no setor de Pesquisa e Desenvolvimento da filial francesa de uma multinacional da indústria química. O estágio é presencial, e, em setembro de 2020, as aulas na Universidade voltaram ao formato presencial também — desde então, transitaram entre o formato virtual, híbrido, e atualmente retornam ao presencial.

A França foi a primeira a noticiar casos na Europa quando o Sars-Cov-2 chegou ao continente. Quando os países da União Europeia tornaram-se o epicentro da doença, em março de 2020, foi um dos países com maior número de mortes diárias, junto com Espanha e Itália. Até hoje, a França é um dos mais afetados nos números cumulativos da Covid-19.

Até o fechamento desta reportagem, havia 5,85 milhões de casos confirmados e 111 mil mortes no país.

França é o sexto país com maior número de mortes no mundo, sendo um dos seis únicos a ultrapassar a marca de 100 mil mortes. Fonte: Our World Data

Idas e vindas dos lockdowns

Desde 2020, a França passou por três movimentos bem conhecidos dos europeus e de quem acompanha a série do Zero em Pandemia. Em março e maio, houve o primeiro, e, no caso francês, o mais duro lockdown. Para sair de casa, era necessário apresentar uma autorização, que notificava os policiais que monitoravam as ruas sobre o motivo da saída: ir ao médico, fazer compras nos supermercados, idas à farmácia ou desenvolver trabalho essencial eram os únicos motivos válidos. Havia multas crescentes para quem desrespeitasse as normas, que começavam em 135 euros (cerca de R$ 800,00, na cotação de 30/06/2021) e poderiam levar até à prisão.

Durante parte de 2020, Vitória transitava apenas entre seu quarto e os gramados da Cidade Universitária. Crédito: acervo pessoal

Com a chegada do verão, houve diminuição dos casos, e um consequente afrouxamento das restrições de isolamento. Vitória aproveitou o momento para viajar ao casamento de um colega em Bourges, na região administrativa Centro da França. “Ainda tinha que usar máscara, as regras continuaram, mas tinha muito pouco caso de Covid-19. Mas chegou o inverno e explodiram os casos”, relembra.

Em outubro, iniciou o segundo lockdown nacional, que fechou museus, bares e restaurantes, por exemplo, até meados de maio. No Natal, o governo fez uma pequena concessão, liberando ceias com até seis pessoas. “Como o teste de Covid é gratuito, todo mundo fez e se reuniu”, conta Vitória.

Em janeiro de 2021 houve nova flexibilização, mas o início da terceira onda da doença, em março, fez o governo decretar, primeiramente, lockdowns locais onde havia altas taxas de infecção, como na Île-de-France, região administrativa onde Paris se encontra. Poucas semanas depois, foi decretado um terceiro lockdown nacional, pelo ainda crescente número de casos — em 17 de abril, ocorreu o pico da doença em 2021, quando o número de casos diários chegou a 45 mil.

Ainda hoje, a França está em desconfinamento do último lockdown, movimento impulsionado pelos números da vacinação no país. “Hoje, se você sair à noite, em grupo, na rua, parece que não existe mais pandemia”, relata Vitória. Em maio, o toque de recolher passou das 19h para às 21h, e em junho foi oficialmente retirado, e a fiscalização policial nas ruas já não é frequente.

Passear pelas ruas da capital com colegas é um dos jeitos que encontrou de passar o tempo e continuar aproveitando a cidade com segurança. “Uma vez fomos a pé da minha casa até o Louvre. Mas não tinha ninguém na rua. É algo estranho conceber, estar em Paris e não ter um turista na rua”, reflete.

Liberté, égalité e “protesté”

Ao longo de 2020 e 2021, a pandemia não impediu os franceses de saírem às ruas para protestos de cunho social. Vitória explica que, devido à história política do país, protestos são constantes e frequentemente combativos, não raro terminando com veículos incendiados. Durante a pandemia, destaca dois como os mais significativos: o primeiro em maio de 2020, quando a população aderiu ao movimento Black Lives Matter [Vidas Negras Importam], após a execução de George Floyd em Minnesota, nos Estados Unidos. Além da óbvia importância do movimento, o protesto significou a primeira reunião coletiva dos franceses após o primeiro lockdown.

O segundo maior protesto aconteceu em primeiro de maio de 2021, Dia do Trabalhador. “É uma tradição deles aqui. As pessoas estavam tão felizes de ver gente aglomerada”, comenta Vitória, que participou dos protestos do Dia.

“Levamos gás lacrimogêneo na cara, mas também teve música, tacaram fogo nas coisas na frente [do protesto]. Foi uma mistura de protesto e festa”

Momentos de protesto no Dia do Trabalhador. Crédito: acervo pessoal

“A ansiedade me ‘ferrou‘ mais que a Covid”

Em janeiro, durante um breve relaxamento das medidas de restrição, Vitória contraiu a Covid-19. “Como as coisas estavam voltando ao normal, eu peguei confiança. Demorou uns dias pra eu perceber, achava que era uma alergia, mas como o teste é acessível, eu fiz, e deu positivo”, relata.

Ficou sete dias em isolamento no quarto, uma vez que na França, o governo tinha como diretriz que, após 48h consecutivas sem sintomas como febre ou tosse, a pessoa infectada não transmite mais a doença e não precisa ficar em quarentena. No período, contou com o apoio dos colegas de residência, que fizeram as compras de supermercado, e dos colegas do Brasil, que deram apoio moral e acolhimento.

“Na verdade, a ansiedade me ‘ferrou’ mais que a Covid. Foi um dos maiores terrores da minha vida. Principalmente porque eu tive um familiar que faleceu [de Covid] no Brasil, na mesma época. Acho que tive até ataque de pânico, eu sentia que não estava conseguindo respirar”

Como o sistema de saúde francês permite visitas residenciais de médicos plantonistas, Vitória marcou um atendimento quando estava com falta de ar. “No momento em que eu vi o médico na minha porta, imediatamente me senti melhor. Me consultou, mediu meu oxigênio. Eu nunca me senti tão bem tratada por médicos quanto aqui”, conta.

Saúde informatizada e a “xepa” da vacina

A boa relação de Vitória com o sistema de saúde francês precedeu a pandemia. A maior parte do valor desembolsado pelos franceses em consultas, medicamentos e tratamentos de saúde é reembolsado pelo Estado (de 70% a 80%), com a arrecadação do programa Securité Sociele, descontado do pagamento de todos os trabalhadores.

Para pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica, o reembolso chega a 100%. Além disso, quem possui um plano de saúde complementar, chamado de Mutuelle, pode ter o resto do valor total ou parcialmente ressarcido.

Cada núcleo familiar tem um médico geral designado, que deve ser sempre o primeiro contato caso haja necessidade de começar um tratamento com especialistas de outras áreas.

Na pandemia, entretanto, não é necessário passar por profissionais e ter requisição médica para fazer o teste da Covid, como é no Brasil.

O teste que positivou Vitória, inclusive, foi apenas um dos mais de 20 testes que fez. O processo é simples: ir à farmácia e solicitar um teste rápido gratuito. Em menos de 20 minutos, os resultados já estão acessíveis.

“Fazer o teste de Covid-19 aqui é como ir beber água, tomar uma aspirina. É realmente muito acessível. É uma vergonha quem não aproveita aqui, e uma vergonha no Brasil ter que pagar para fazer o teste”, desabafa.

No Brasil, testes rápidos em farmácias ou os de laboratórios variam entre R$ 100,00 e R$ 400,00.

A pandemia também acelerou a tendência francesa de informatizar a saúde e torná-la o mais digital possível. Boa parte das consultas com os médicos já eram marcadas através de um aplicativo estatal, o Doctolib. O combate à Covid-19 e, principalmente, a vacinação da população também seguiu o mesmo parâmetro de digitalização.

O governo atualiza diariamente o aplicativo TousAntiCovid [Todos Contra a Covid, em tradução livre], por onde a população se informa sobre a situação diária da pandemia. É por isso que Vitória sabe, em poucos instantes no celular, que no dia 30 de junho, na França, já estão vacinadas quase 34 milhões de pessoas, 22,8 milhões com a segunda dose.

Ao todo, 31% dos franceses já estão totalmente vacinados — esse número é de 12% no Brasil.

Parisienses no Parque Jardins de Tuilerie, ainda em sua maioria de máscaras, embora não seja mais obrigatório o uso em espaços abertos. Crédito: acervo pessoal

Há dois meses, ela também é uma das pessoas vacinadas. Em 13 de maio, Vitória entrou na fila da “xepa”, que reaproveita as doses de vacinas que não foram aplicadas no dia. Ao contrário do Brasil, em que a espera pela xepa é presencial, na França o cadastro é realizado digitalmente. “Eu fiquei dando F5 [atualizando a página] até conseguir uma vaga. No final, não fez tanta diferença, porque duas semanas depois abriu pra todo mundo”, comenta.

Desde o dia 31 de maio, a França vacina toda a população acima de 18 anos. As vacinas aplicadas na França são da Moderna, Pfizer/BioNTech, Janssen e AstraZeneca, a última apenas para pessoas maiores de 55 anos. No dia 15 de junho foi aberta a vacinação de crianças acima de 12 anos, estas apenas com a vacina da Pfizer.

Agora, quem quiser se vacinar no país é só agendar um horário no aplicativo do governo.

“Olhando aqui no app, tem um monte de vaga para se vacinar. Até pra amanhã, se você quiser”, comenta Vitória, olhando seu celular.

França e Brasil

O relato de Vitória é de uma realidade totalmente contrastante com a do país em que nasceu. “Parece que a gente saiu do sufoco. Os casos despencaram, as vacinas estão abertas para todo mundo. Todo mundo que eu conheço já tomou. A vida existe agora, as coisas estão abertas, já tem teatro, concerto, cinema”.

Desde 17 de junho, a população também pode caminhar pelas ruas das cidades sem máscaras no rosto — o governo francês retirou a obrigatoriedade da proteção nos ambientes externos. Mas, como em ambientes fechados, como comércio e transporte público, as máscaras ainda são obrigatórias, Vitória percebe que as pessoas geralmente optam por continuar de máscara nos seus trajetos.

Para entrar em eventos culturais e festas, os franceses precisam apresentar seu certificado de vacinação — disponível no aplicativo TousAntiCovid e verificado por QR Code –, ou um teste rápido negativo realizado antes do evento.

Essa é uma das muitas diferenças no enfrentamento à pandemia entre França e Brasil, para onde não voltou desde sua partida em 2019. “É como se a vida tivesse igual [nos dois países], mas na verdade o Brasil tá estourando de caso”, comenta.

Desde abril, a França nem sequer está autorizando a liberação de vistos para estudantes do Brasil. Motivos de estudo eram uma das únicas exceções que autorizava a entrada de brasileiros no território francês. Vitória, por já ser estudante da universidade francesa e estar em vias de terminar o curso, não teve problemas em permanecer no país.

Sobre as diferenças entre o combate à pandemia na França e em seu país natal, ela não demora a se posicionar.

“É mais fácil responder o que eu acho que é igual, porque o diferente eu acho que é tudo”.

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Written by Zero

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC

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