Sem restrições rígidas para acesso a festas, bares e outros estabelecimentos, Henrique Germano Etges, 20 anos, revela ser possível levar uma vida normal na República Tcheca. O país, que começa a ver a queda da onda mais contagiosa da Covid-19 — a da variante Ômicron –, retirou a obrigatoriedade do passaporte vacinal, até então exigido, e a necessidade de idosos se imunizarem. “Olha eu estou tentando pensar, mas não vejo nada, sinceramente, de diferente na minha vida. Literalmente nada. Porque aqui, tirando a máscara, não tem algo que te faça lembrar uma pandemia”.
Apesar de hoje viver nessa realidade, em 2021, o estudante de história da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) quase viu a Covid-19 adiar seu intercâmbio. Quando ia iniciar o processo do visto, para poder estudar na University of Hradec Králové, instituição parceira da UFSC pelo programa Erasmus, o Consulado da República Tcheca em São Paulo fechou por três meses. Naquela época, com o Brasil atingindo mais de três mil mortes diárias, Henrique não sabia se chegaria a tempo para o início do semestre de inverno, em setembro, no país europeu. Ele conta que não pensou em desistir do intercâmbio por conta do novo coronavírus, mas que uma alteração de calendário chegou a ser sugerida.
Com o visto em mãos e poucos dias de atraso, o estudante, natural de São Lourenço do Oeste (SC), chegou em seu destino, Hradec Králové (CZ). De acordo com o protocolo de biossegurança, permaneceu isolado em um apartamento disponibilizado pela universidade, durante quatro dias; no quinto, testou negativo e foi liberado. “No início a República Tcheca estava mais rígida, você tinha que apresentar o PCR quando chegava na fronteira, aquele controle que eles fazem no aeroporto. Como não tem voo direto do Brasil para Praga (CZ), eu tive que fazer isso na conexão em Zurique (CH) e chegando aqui, ficar isolado”.
No Brasil, quando Henrique recebeu a autorização de prioridade para se vacinar, em Florianópolis, não tinha mais tempo hábil para isso. Assim, no momento em que foi liberado da quarentena, pegou um trem para Praga (CZ) com o objetivo de se imunizar. “Graças à debilidade da população que não quer se vacinar, eles vacinam em qualquer lugar em Praga. Desceu do trem, o posto de vacinação está na frente, tu chegas, dá teus documentos e se vacina”.
Com mais de 10 milhões de habitantes, a República Tcheca enfrenta dificuldades em aumentar suas taxas de vacinação. Desde dezembro, a imunização completa no país não cresceu nem 5%. No total, são 63,9% de vacinados com as duas doses. “O ritmo é muito baixo porque as pessoas que queriam se vacinar, já se vacinaram”, afirma o estudante. Segundo Henrique, o último governo criava estratégias para elevar os números, como a obrigatoriedade de profissionais da saúde tomarem as doses indicadas. “Só que eles estagnam muito fácil. Aqui, a curva [de vacinação], ao invés de ser uma progressão geométrica, é aritmética. Vai subindo aos poucos”.
Outro ponto decisivo para esse cenário é que nem todas as cidades tchecas têm a estrutura de Praga (CZ). Lá, há postos de vacinação em shoppings, praças, estações de trem etc., e estrangeiros e nativos se vacinam com apenas um documento, passaporte e identidade respectivamente. Já em cidades pequenas, há mais burocracia. “Aqui [em Hradec Králové] quem vacina são os hospitais, não tem drive thru e você tem que fazer um registro. Então eu acho que a população se sente menos motivada, porque não é uma coisa prática”.
O país, que já liberou a vacina para crianças de 5 a 11 e agora aplica a dose de reforço para os adultos, tem um protocolo de vacinação diferente do Brasil. Para se imunizar, o cidadão precisa pagar, no entanto, o plano de saúde reembolsa o valor. O custo é de aproximadamente R$ 92,00 e o pagamento é parcelado pela quantidade de doses administradas. Segundo Henrique, a maior parte dos tchecos tem plano de saúde. No momento, estão disponíveis na República Tcheca as vacinas da Pfizer, Moderna, Oxford, Janssen e Novavax. Todas integram o grupo de imunizantes aprovados pela União Europeia.
TROCA DE GOVERNO
Com a mudança de governo, em outubro de 2021, a República Tcheca se tornou mais flexível com as regras da pandemia. “Esse [governo] se elegeu com base nas pessoas que estavam insatisfeitas. É um governo mais à extrema direita que agora está no poder. Essas pessoas foram eleitas graças às que estavam de ‘saco cheio’ das medidas do outro”. Henrique completa, “não que o outro fosse uma maravilha”, segundo sua percepção, já estando no país.
A primeira decisão tomada pela nova gestão foi descartar o antigo plano de imunização. No esquema atual, além da vacinação não ser mais exigida em estabelecimentos, ela também é eletiva para pessoas da terceira idade e alguns profissionais. “Se você quer ir numa festa, num bar, não é mais obrigado a apresentar nada”. O estudante de história comenta que frequentemente acontecem confraternizações em espaços fechados lotados e que ninguém mais comenta sobre a doença.
“Você não precisa nem falar tcheco para ver nas notícias que isso não é prioridade aqui. É uma vida normal. Eles estão tentando copiar países como a Dinamarca e o Reino Unido, que tiraram as medidas de proteção e estão tentando tocar a vida pra frente”. Apesar do Reino Unido não apresentar crescente número de mortos, com as novas políticas, a Dinamarca bateu seus recordes de contaminados e óbitos no último mês. Já a República Tcheca atingiu a marca de mais de 50 mil contaminados em um dia, com a Ômicron. Apesar do número de óbitos ter um significativo aumento, não chegou aos picos de 2021.
CONDUTA DA UNIVERSITY OF HRADEC KRÁLOVÉ
Em setembro de 2021, quando Henrique chegou em Hradec Králové (CZ), a universidade estava aderindo ao modelo híbrido de educação. Porém, o estudante relembra que devido à quantidade de professores contaminados, algumas aulas que estavam liberadas para serem presenciais aconteceram de forma remota. Hoje, o cenário mudou e o ensino é 100% presencial.
Com o fim do ensino remoto, a instituição afirma que seus protocolos contra a Covid-19 incluem a obrigatoriedade do uso de máscaras e uma prova de que o estudante não está com a doença, seja pelo comprovante da vacina ou por um exame PCR. Apesar do posicionamento da universidade, Henrique alega que, na prática, o certificado de imunização ou os testes negativos não estão sendo solicitados. Mesmo sendo a onda mais contagiosa que o estudante viu na República Tcheca, ele admite ter colegas que decidiram não se vacinar.
A entidade parceira da UFSC, que atende aproximadamente 6.500 alunos, também disponibiliza alguns quartos para que os contaminados façam quarentena. Eles estão localizados em dormitórios separados dos intercambistas e são iguais ao que Henrique ficou quando chegou ao país. O estudante, que divide apartamento com outros três estrangeiros, conta que nesse momento um de seus colegas está no bloco destinado à Covid-19. “Antes você via que as pessoas pegavam, mas não sabia quem eram. Agora, aqui no próprio dormitório da universidade, conheço várias pessoas que estão em quarentena”.
Quase um ano depois de ver seu nome na lista de aprovados para o intercâmbio, Henrique já tem data marcada para voltar ao Brasil, em 2022. Mesmo com a possibilidade de renovar a estadia, ele pretende concluir a formação em história na universidade federal, onde começou. O programa Erasmus, criado e financiado pela União Europeia, visa à mobilidade entre instituições, a fim de promover a excelência na educação superior. O aluno selecionado tem a oportunidade de estudar assuntos de seu interesse e não necessariamente as disciplinas previstas em seu curso de origem.
*A entrevista, realizada com Henrique, ocorreu antes da invasão Rússia-Ucrânia, por isso o tema não foi abordado na conversa, que se ateve às questões de administração da pandemia no país, conforme o nome da série.
Reportagem por Karol Bernardi, com orientação dos professores Valentina Nunes e Ildo Golfetto.