Em 25 de fevereiro de 2020, a Áustria descobriu os seus dois primeiros casos de Covid-19. Desde então, o conservador Sebastian Kurz, chanceler austríaco, vem tentando conter o avanço da doença e de novas variantes pelo país, através de medidas como a testagem em massa e lockdown. No entanto, o governo tem enfrentado contratempos, como a recente demissão do ministro da Saúde e a lentidão no processo de vacinação. Entenda mais sobre a situação da Áustria através do relato de Laura Helena Schmitz, estudante curitibana de 22 anos que se mudou de Florianópolis para a cidade de Salzburg durante a pandemia.
Por Evelyse Porto
O descontentamento com a falta de investimento na ciência brasileira e o modo com que o Brasil tem lidado com a Covid-19 foram as principais motivações para Laura Helena Schmitz sair do país — em plena pandemia — e recomeçar sua vida na Áustria. Com 22 anos, a estudante não tinha uma perspectiva positiva sobre o seu futuro profissional. “Eu mal tinha oportunidades de crescer profissionalmente, sendo uma cientista em formação. Eu não conseguia ver um futuro para mim”, explica.
Em outubro de 2020, Laura deixou Florianópolis (SC) e sua vaga no curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) para viver em Salzburg, que fica a cerca de 295 km de distância de Viena, capital austríaca. Foi seu namorado, o estudante Michael Ellensohn, quem a convenceu de se mudar para o país.
Com uma população de 8,8 milhões de habitantes — apenas um pouco maior que a de Santa Catarina, atualmente estimada em 7,1 milhões –, a Áustria confirmou seus dois primeiros casos de Covid-19 em 25 de fevereiro de 2020. Até o fechamento desta reportagem, em 18 de abril de 2021, eram 591.347 infectados pelo vírus, sendo mais de 553 mil recuperados e 9.870 mortos.
Atualmente, a curva de contágio pela doença no país europeu vem caindo, após um breve aumento no início de abril — em média, são 2.370 novas infecções e 29,7 mortes relatadas diariamente. No entanto, a Áustria vem enfrentando problemas com a chegada da variante sul-africana do SARS-CoV-2 à região de Tirol.
Além disso, o então ministro da Saúde do país, o ambientalista Rudolf Anschober, anunciou sua demissão do cargo em 13 de abril. Anschober, que assumiu o cargo em janeiro de 2020, disse estar exausto, devido à gestão da pandemia. O novo encarregado pela pasta é o médico Wolfgang Mückstein.
Como funciona a saúde na Áustria?
O sistema de saúde austríaco é mantido, principalmente, pela arrecadação de impostos e da contribuição previdenciária. Porém, também é financiado através do pagamento privado de taxas como o subsídio diário de internação e até mesmo das contribuições para o seguro de saúde privado.
A saúde pública funciona como uma espécie de seguro — algo semelhante ao sistema de seguro de carros no Brasil. O valor pago pelo contribuinte mensalmente inclui serviços como o atendimento ambulatorial, exames e a reabilitação médica. No entanto, serviços como atendimento odontológico e diárias de internação são pagos à parte. Além disso, se uma pessoa não contribui com o seguro-saúde, ela é responsável pelo pagamento dos serviços de forma particular.
Por ter o visto de permanência no país para estudar, Laura tem direito ao seguro-saúde. Mensalmente, ela precisa pagar 60 euros — o que, até o fechamento desta reportagem, equivale a R$ 401,36 — para ter direito ao sistema público austríaco. Porém, a estudante de Ciências Biológicas vem tendo dificuldades para marcar consultas de rotina.
Ela explica que, para comprar pílulas anticoncepcionais, a apresentação de uma receita médica é obrigatória — ou seja, ela precisa de uma consulta com um ginecologista para conseguir a prescrição. Contudo, os atendimentos não estão ocorrendo normalmente, já que todos os esforços estão voltados ao enfrentamento da pandemia. “É por isso que eu falo: o Brasil tem um bom preparo para lidar com epidemias, porque está preparado para isso. O país ainda consegue atender o pessoal que precisa de transplante e o pessoal que está com Covid, por exemplo. O sistema é bem separadinho”, defende Laura.
Medidas de controle e novas variantes
Quando as autoridades notaram que a principal porta de entrada da Covid-19 na Europa era através de uma cidade da região de Tirol, em março de 2020, a população local foi colocada em quarentena. Em seguida, o governo austríaco ordenou o fechamento das universidades do país, além de cancelar todos os eventos com aglomeração. Apenas em 16 de março foi decretado o primeiro lockdown em todo o território, o qual permaneceu até 20 de abril de 2020.
Quando iniciou o verão austríaco, as medidas de contenção foram relaxadas. “Você via o pessoal aglomerando, tinha show, o pessoal aglomerava no lago… Aí que começou a segunda onda”, descreve Laura. Ela explica que, por conta da Segunda Guerra Mundial, a Áustria possui uma aversão muito grande a qualquer atitude que a população interprete como repressão — seja policial ou governamental. “O governo queria fechar tudo de novo, mas era muito pressionado por empresas e pela população. Eles demoraram muito para decretar lockdown… Quando fizeram, já era tarde demais”, explica. O segundo bloqueio, decretado em novembro, coincidiu com a época em que Laura faria o teste para conseguir o visto de estudante e permanecer no país. No fim das contas, ela apenas conseguiu realizar as provas em dezembro e obteve a permissão no início de janeiro.
Após um novo relaxamento nas medidas de combate à pandemia, em dezembro de 2020, o governo austríaco optou por uma nova estratégia: a testagem em massa da população. No entendimento do chanceler Sebastian Kurz, quanto maior a testagem, mais efetivo é o rastreio de pacientes positivos para o coronavírus, e mais efetivo é o isolamento dos infectados.
Porém, já em 2021, Tirol voltou a enfrentar sérios problemas com a Covid-19 — desta vez, por conta da aparição da variante sul-africana. Por essa razão, estão realizando um estudo na região sobre como a vacina da Pfizer/BioNTech atua no combate a novas mutações no SARS-CoV-2. A vacinação em massa teve início em 8 de março e se aplica a todos os residentes maiores de 16 anos. Em menos de 24 horas, mais de 20.000 pessoas — cerca de ⅓ da população da cidade de Schwaz, a qual foi afetada pela variante — se inscreveram para receber o imunizante.
Laura entende que, atualmente, há uma espécie de “meio lockdown”. “Pode fazer algumas coisas, mas [outras] não pode. Você não precisa usar máscara na rua, mas precisa usar [a máscara] PFF2 dentro de ônibus e de estabelecimentos”, explica, e ainda adiciona que as medidas estão confusas para a população austríaca em geral.
Atividades de ensino no país
Laura está no primeiro semestre de Ciências Biológicas pela Universidade de Salzburg. Diferentemente de Michael — que frequenta uma espécie de “curso técnico” de Massoterapia e precisa realizar todas as aulas práticas de forma presencial –, ela faz todas as atividades acadêmicas de maneira remota. “Mesmo tendo a previsão de vacinação em massa até julho, foi decidido que todo o semestre será remoto”, explica.
Quase todas as disciplinas práticas foram adaptadas para essa nova realidade — as com mais de 60% da carga horária prática foram canceladas. Espera-se que, quando a situação normalizar no país, a reposição dessas aulas seja feita. Além disso, há disciplinas que, por lei, devem ser feitas no primeiro semestre da graduação — como Biologia Celular e Bioquímica. Nesse caso, a Universidade de Salzburg precisou adaptar todo o conteúdo para o universo online.
No entanto, apesar do ensino remoto, a biblioteca da Universidade de Salzburg está aberta, e segue protocolos de segurança para evitar o contágio pela Covid-19. “Eles oferecem material para a limpeza da mesa. Então, sempre que a gente chega, tem que pegar um paninho e uma solução aquosa de limpeza, e a gente passa na mesa e na cadeira”, detalha Laura. As mesas, que até então eram compartilhadas entre os estudantes, agora só podem ser ocupadas por apenas uma pessoa. Além disso, a lanchonete, que antes funcionava normalmente, está fechada, já que, por conta da pandemia, os alunos não podem se alimentar na região da biblioteca.
Problemas na distribuição de vacinas
Assim como em outros países da União Europeia (UE), o ritmo de vacinação na Áustria anda a passos lentos: até o fechamento desta reportagem, 2,46 milhões de doses já haviam sido aplicadas, o que representa 8,1% da população. Desse total, apenas 713 mil cidadãos já receberam as duas doses. A promessa do governo austríaco é de realizar a vacinação em massa de jovens maiores de 18 anos até julho de 2021, e os imunizantes utilizados no país são da Moderna, Oxford/AstraZeneca, Pfizer/BioNTech e da Johnson & Johnson.
O plano de imunização dos austríacos foi dividido em três etapas. A primeira — que teve início em janeiro de 2021 –, contempla a população acima dos 80 anos residente em instituições de longa permanência, além de profissionais de saúde, pessoas com deficiência e seus acompanhantes e outros pacientes com comorbidades. A segunda fase prioriza os idosos de 65 a 79 anos, bem como equipes de saúde com baixo ou moderado risco de infecção e pessoas em contato próximo com mulheres grávidas. Os profissionais de educação e segurança pública também fazem parte do segundo grupo. Já a última parte, prevista para começar em maio, pretende vacinar toda a população com menos de 65 anos. O chanceler austríaco Sebastian Kurz prometeu vacinar toda a população adulta em 100 dias.
Em março de 2021, Kurz acusou outros países da UE — sem usar nomes específicos – de terem fechado acordos secretos com laboratórios farmacêuticos para a compra de vacinas. No entanto, não há provas de que isso realmente aconteceu. Kurz também criticou a distribuição desigual dos imunizantes aos países membros do bloco econômico. O chefe do governo austríaco — junto aos líderes da República Tcheca, Eslovênia, Letônia e Bulgária –, enviou uma carta às autoridades competentes falando sobre o assunto.
Além disso, o chanceler tem buscado parcerias com países como Israel e Dinamarca para a compra de mais doses e o desenvolvimento de novas vacinas. Para Kurz, o objetivo dessa possível cooperação é de não depender apenas do acordo feito pela UE, bem como evitar a falta de imunizantes no país em caso de necessidade de uma nova campanha de vacinação.
Diferentemente da acusação feita por Sebastian Kurz sobre os supostos acordos secretos entre países e farmacêuticas, a demora na imunização da população europeia é um fato: de acordo com dados do Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças, apenas 6% da população da UE recebeu as duas doses da vacina. A Organização Mundial da Saúde (OMS) também tem criticado a demora, que se dá por motivos como o atraso na compra dos imunizantes.
Além disso, outro problema enfrentado pela Áustria é a força dos movimentos negacionistas em relação às vacinas. Laura Schmitz explica que “tem manifestação antivacina [em Salzburg] todos os dias. Isso, para a gente [ela se refere ao Brasil], é uma coisa pontual, mas aqui acontece direto”. Ela ainda acrescenta que “tem muita gente de todos os grupos que você pode imaginar. Eles falam que a vacina não tem que ser obrigatória e que o lockdown é [uma forma de] opressão”.